domingo, 7 de janeiro de 2024

Quando a Biologia faz falta ao cidadão

(Imagem do antigo site Polegar Opositor)

Texto publicado em 2009, por Renato Chaves Azevedo, em um antigo site polegaropositor.com.br. É possível acessar o texto no arquivo da web.

O naturalista britânico Charles Darwin foi imortalizado pelo livro que publicou em 1859, “A Origem das Espécies por meio da Seleção Natural”. Nesse livro ele faz uma grande síntese de várias idéias sobre evolução biológica que estavam borbulhando em sua época e propõe um mecanismo pelo qual a evolução poderia ocorrer: a seleção natural. A idéia básica é a de que existem muito mais indivíduos nas populações do que a quantidade que os recursos do ambiente dão conta de sustentar (idéia que ele emprestou de Malthus) e, sendo assim, vários indivíduos morrem. Quais indivíduos? Darwin acreditava, embora não soubesse explicar, que existiam variações entre os indivíduos de uma mesma espécie e que essas diferenças tornavam alguns indivíduos mais aptos do que outros a sobreviver em determinado ambiente. Assim, os indivíduos que tivessem características que os favorecessem a conseguir mais alimento, gastar menos energia, etc., teriam uma chance muito maior de sobreviver do que os que não tivessem essas características ou a tivessem num nível menos eficiente. É importante ressaltar que o que define se uma característica é vantajosa ou não é o ambiente; ter respiração branquial pode ser uma ótima estratégia se você for um ser aquático, mas provavelmente vai te matar se você for terrestre.

A idéia parece simples, mas não é tão fácil assim entende-la, e as tentativas de simplificação da teoria de Darwin dificilmente são bem sucedidas. Duas frases ficaram muito famosas e são sempre lembradas quando se fala de evolução: (1) “Os mais fortes sobrevivem” e (2) “A sobrevivência dos mais aptos”, e muita gente acha que a evolução é simples assim.

No séc. XIX, um grupo bastante parcial utilizou a teoria da evolução de Darwin para justificar as desigualdades sociais e para propor uma forma “científica” de acabar com ela. Esse movimento ficou conhecido como Darwinismo Social, e a idéia era bem clara: “Se são os mais aptos que sobrevivem, e os pobres não conseguem sobreviver direito, então eles não estão bem adaptados à vida na sociedade. Eles devem ser eliminados”. É isso mesmo que você leu. Se existem ricos e pobres, é por que os ricos devem ter alguma característica intrínseca que os favorece, e essa característica é boa para a espécie humana. Os pobres, por sua vez, são pobres por que devem ter alguma característica intrínseca (incompetência, vagabundagem, etc.) que os desfavorece, e essas características são ruins para a espécie humana. Sendo assim, se a gente matar todos os pobres, vamos eliminar os indivíduos que têm características ruins para a nossa espécie e, dessa forma, vamos contribuir para a evolução humana. Mãos a obra!

De fato, colocaram as mãos pra trabalhar. A idéia de melhoramento da espécie humana, conhecida como Eugenia, mobilizou muitas pessoas. Essas pessoas se organizavam em instituições (Sociedades Eugênicas) e faziam intervenções na sociedade como, por exemplo, programas de castração de pobres. No séc. XX, Hitler, um grande camarada eugênico, utilizou esse mesmo ideário para dizer que os judeus e os negros eram inferiores e para justificar que a raça ariana era a melhor. No Brasil existia o Comitê Central de Eugenismo, que propunha a proibição da imigração de não brancos e medidas para impedir a miscigenação. Dizem as más línguas que Monteiro Lobato, o renomado escritor infantil, fazia parte desse comitê (Jeca Tatu e Tia Nastácia que o digam!).

Darwin não tinha a menor intenção de que nada disso ocorresse, e inclusive dedicou um livro inteiro à evolução humana (“The Descent of Man”, de 1869) para deixar claro que há diferenças entre a seleção natural e a seleção em humanos. Mas isso não adiantou muito; seu próprio filho (um dos 10) foi um dos primeiros cérebros do movimento eugênico na Inglaterra.

Foi tudo isso um grande mal entendido dos escritos de Darwin ou será que distorceram propositalmente a teoria do grande naturalista para justificar genocídios e campos de concentração? No final das contas, não importa muito. Esse movimento, embora enfraquecido, ainda está vivo, e tomou outras formas. Enquanto muita gente acha que evolução se resume a pescoços de girafa tentando alcançar as folhas mais altas das árvores, negros e outras minorias ainda sofrem intensa discriminação, e de vez em quando ainda aparecem alguns cientistas falando das vantagens do “embranquecimento da população mundial”.

O fato é que é preciso entender muito bem a teoria evolutiva para desconstruir esses argumentos tendenciosos e perceber que não é bem assim que as coisas funcionam. “Os mais fortes sobrevivem” é uma simplificação ingênua demais de uma teoria altamente complexa, principalmente quando aplicada a uma espécie que não tem apenas diferenças morfológicas e comportamentais, mas também culturais.

Se alguém achava que a Ciência só faz interface com a sociedade quando aplicada à tecnologia ou à saúde, espero ter dado um bom exemplo para mostrar que essa relação é muito mais íntima do que parece, como bem podem dizer os judeus, ou os negros, ou os pobres.

Para saber mais, leia esse texto aqui:

Bizzo, 1995 – Eugenia: Quando a Biologia faz falta ao cidadão.

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